Conflitos Internos e Externos
Ir∴ Helo Augusto Ketelhuth (in memoriam)
A∴ R∴ L∴ S∴ 31 de Março Nº 152
À G∴ D∴ G∴ A∴ D∴ U∴
Uma das características das sociedades plurais é a existência de valores em conflitos internos e externos. O conflito interno é o choque de valores particulares que conduzem o indivíduo a situações de dilemas de ordem moral ou de escolhas difíceis. O conflito externo é o desacordo moral advindo dos interesses de grupos específicos.
Os conflitos são constantes e o equilíbrio é precário; existem valores dos quais indivíduos e grupos não se dispõem a abdicar. Esse desacordo mobiliza elementos característicos da complexidade das relações humanas que se chocam constantemente e jamais encontrarão síntese; são interesses pessoais, emoções, altruísmo, egoísmo, segurança, temor, autonomia, educação, livre-arbítrio e outros. A consequência é a impraticabilidade de se atingir um acordo moral de ponta a ponta, ou seja, a harmonia celestial não está ao alcance dos homens. O que se espera, no mínimo, é a disposição para revisões e reformulações constantes para que o acordo se acomode da melhor forma possível as exigências das partes em conflito.
A esperança de que a humanidade alcançasse uma harmonia perfeita sempre esteve ligada aos ideais utópicos. Morus formulou idéias que ilustram bem essa situação: o bem público acima dos interesses privados é o parâmetro para mensurar todos os valores e ações humanas. O indivíduo deve esforçar-se num exercício de impessoalidade e colocar de lado os próprios interesses em benefício de um bem muito maior.
O problema surge quando se exige que os valores individuais sejam esmagados pela busca de um valor-trunfo único, estatal. Esse monismo de valores não reconhece a multiplicidade e o conflito permanente entre eles, com base na suposição equivocada de que se podem forçar vontades diferentes a convergir para uma mesma atitude e opinião. É desumano porque se mostra insensível a complexidade das relações humanas, responsável por tornar a vida mais dinâmica e mais interessante. O que há de belo e move a vida são as diferenças humanas sincrônicas e diacrônicas.
Nem todas as inclinações pessoais são facilmente resolvidas por um procedimento simples de generalização. Se um pai visse o filho no meio de outras pessoas, em um incêndio ou afogando-se, ele não desligaria os interesses pessoais em função de uma análise utilitarista da situação. A tendência para a generalização de valores é uma atitude preguiçosa e acomodada. Na incapacidade de meditação, leitura e análise criteriosa, a melhor opção e assimilar o pensamento alheio ou aquele ditado pelas telas virtuais, cujo objetivo, na verdade, é vender produtos e ideologias.
Descartada a ironia da frase de Nelson Rodrigues, pode se dizer que a generalização é burra e anti-progressista. Mas acordos são possíveis quando os indivíduos se mostram dispostos a transigir em determinados conceitos e aspectos para contemplar um resultado aceitável ao grupo, sem desfigurar os valores pessoais mais enraizados. Se um namorado quiser muito ver um filme pipoca, mas a namorada preferir um filme intelectualizado, eles terão de adotar algum procedimento que ambos considerem justo, a fim de resolver o conflito e garantir a continuidade do romance.
É nessa mal feita comparação que reside o sentido mais puro da Democracia: buscar o acordo no pluralismo das divergências. O trabalho é árduo e complexo porque tenta oferecer respostas positivas a problemas que costumam frustrar prognósticos das mais variadas espécies. E mais, não se dispõe apenas do aparato racional para a resolução dos problemas. Não há como desprezar a multiplicidade de noções do bem, passados históricos, formas culturais e outras variantes, caso contrário a concepção do arranjo democrático soaria imoral. A concepção utópica não se fundamenta somente em acordos já marmorizados na sociedade, mas também na aceitação dos desacordos permanentes como veículos do progresso social.
Não se deve confundir atos de caridade com a caridade; momentos de felicidade com a felicidade; fatos democráticos com a democracia. O abstrato existe independentemente da existência do concreto e precede a ele. A busca da democracia mais pura é também a busca da verdade, que aí se esbarra na ignorância, na incerteza e na insegurança.
Vale a pena lembrar a história. Dizem que o diabo andava passeando com um amigo quando viu um homem a sua frente abaixar-se para apanhar algo brilhante que faiscava em seu caminho. O homem pôs aquela estrela luminosa em suas mãos, admirou-a por um bom tempo e a colocou junto ao peito. O amigo do diabo, curiosíssimo, cochichou baixinho no ouvido de Satanás: ‘Nossa !!! O que é que é aquilo !?! Que coisa mais linda e brilhante aquele sujeito pegou no chão !‘ O diabo, experiente, respondeu: ‘Aquele homem acabou de encontrar a liberdade ao colocar a luz da verdade em seu coração...’ Então o amigo do diabo exclamou: ‘Xiiii, mas isso deve ser um péssimo negócio para você ! Como vai poder obscurecer a verdade e aprisionar novamente o homem as suas intenções ?!?’ O diabo arqueou as sobrancelhas, deu um sorriso diabólico e disse: ‘Fácil. É só organizá-la em crenças,sistemas e instituições...’
Ignorar é não saber alguma coisa. O ignorante não se dá conta da própria situação de ignorância; ele não sabe que não sabe; ele não sabe que ignora. O estado de ignorância se mantém em nós quando nossas crenças e opiniões se conservam como eficazes e úteis permanentemente. Não há motivo para duvidar delas, para desconfiar delas. Em razão disso, o ignorante acha que sabe tudo que há para saber e tudo que todos devem saber.
A incerteza é diferente da ignorância porque, na incerteza, o ignorante descobre que é ignorante. Descobre que suas crenças e opiniões parecem não dar conta da realidade; há falhas naquilo em que sempre acreditou e que sempre serviu como referência para pensar e agir. Na incerteza não sabemos o que pensar, o que dizer ou o que fazer diante de certas coisas, pessoas e fatos antes ignorados. E,da dúvida, da perplexidade com o novo somos tomados pela insegurança..
O espanto e a admiração com o novo nos fazem querer saber o que não sabíamos para escapar da insegurança; fazem-nos, então, perceber nossa ignorância e criam em nós o desejo de superar a incerteza em busca da verdade. Estamos agora na disposição para a busca da verdade. Sem essa disposição, o indivíduo perdeu o bonde da história e, no dizer de Fernando Pessoa, são ‘Cadáveres anunciados que procriam’. Arrogam para si a posse de uma verdade dogmatizada e inquestionável.
Quanto maior a vontade de poder, menor o apreço a liberdade. Liberdade e igualdade aí são antíteses. A ideia e o princípio do absolutismo reside na negação total do valor da liberdade. É o valor da liberdade e não o valor da igualdade que determina, em primeiro lugar, a ideia da democracia. Homens livres não precisam ser necessariamente iguais e nem se impõem uns aos outros. Democracia não se assemelha a uma pilha de tijolos: todos do mesmo formato, produzidos com o mesmo material, da mesma cor e com a mesma expressividade no olhar e na forma de se manifestar.
A democracia é estratégia provinda da Grécia antiga. Por longo período ficou apenas nos pergaminhos, trancada a sete chaves em Florença. Seu resgate se deu na Inglaterra do século XVIII. Até então os reis personificavam todo o poder, inclusive o divino .
Ao implementar a solução de John Locke, o Reino Unido saltou rápido para o futuro e tomou a dianteira na Revolução Industrial, conservando a pujança nos séculos posteriores. Desprendendo-se dos grilhões romanos pelo corte com as autoridades eclesiásticas, o Estado Absolutista passou a Estado Democrático. Ninguém poderia mais ter em mãos todo o poder do Estado. O triunfo do parlamento sobre o rei pôs termo a monarquia absolutista. Nunca mais uma cabeça coroada desafiaria o legislativo do país; passou-se da prioridade dos deveres de súdito para a prioridade dos direitos de cidadão. Se o governo se exceder ou abusar da autoridade outorgada pelo contrato político, tornar-se tirano, o povo tem então o direito de dissolvê-lo ou rebelar-se contra ele e derrubá-lo.
Meus amigos, já li muito e tenho 41 anos de uma profissão que me deu a conhecer a alma humana. E cada vez tenho menos certezas. Preocupa-me quando vejo tantos com tantas certezas com tão pouca leitura e experiência limitada. Nesse contexto, a política (polis=cidade) neste país e, por extensão, a Democracia vira conversa descompromissada e boa para um intervalo entre uma tulipa de chopp e o torresminho.
O Brasil é um país muito novo. Nossa República vai fazer 120 anos e nunca foi democrática. No Brasil, o que chamamos Democracia consiste apenas de uma mal feita pesquisa de opinião em que se pede ao povo que diga SIM balançando a cabeça ou a cauda em resposta a um conjunto de ações pré-fabricadas, geralmente relacionadas a fatos antecipadamente consumados pelos governantes em seu próprio benefício ou em benefício do grupo que os apoiam. Desde o primeiro século da história brasileira a realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias.
Floriano implantou a ditadura no país. Apossou-se do poder e afastou os liberais para a alegria dos positivistas. Fomos então presenteados com Getúlio e uma década do seu suicídio escorregamos para um período militar. Por fim, temperado com estelionatos dos planos econômicos, costuramos uma Nova República, com uma constituição mais fascista do que democrática, mais totalitarista do que liberal, mais vilã do que cidadã. Os americanos certamente se divertiram.
E a piada persiste. O Executivo legisla por decreto, chamado provisório e escolhe os membros da Magna Corte. O Legislativo, em ambas as casas, se perde em palavreado nonsense na disputa por espaços do poder: falam muito, trocam muitas acusações e trabalham muito pouco para justificar os régios salários. Para se configurar uma ditadura, só faltam as armas. No caso brasileiro, porém, elas são prescindíveis: a compra de votos no Congresso e até no Judiciário é uma marca enraizada que teima em ser cultural na Democracia tupiniquim. Isso somado a realidade das astutas medidas provisórias concede aos insaciáveis um poder econômico, político, social e quem sabe abdominal jamais cogitado.
O Brasil é um país novo (508 anos) quando comparado com as milenares nações europeias e muitas delas ainda maturam um processo democrático. Democracia é um processo lento de amadurecimento e algo que só se aprende tomando parte dela.
O espanto, a admiração e a perplexidade não podem mais ser considerados meros fenômenos ‘deja-vu’ e normais em nossa sociedade, principalmente em nossa Ordem. Eles devem ser a bússola que nos conduzem para uma rota contrária a insegurança, desse modo diminuir as incertezas no caminho da verdade. Nossa Ordem combate a ignorância desse modo.
Há pessoas que desejam saber só por saber, e isso é curiosidade; outras para alcançar a fama, e isso é vaidade; outras para enriquecer com sua ciência, e isso é um negócio; outras para serem edificadas, e isso é prudência; outra para edificarem os outros, e isso é caridade. Se sopras a centelha, ela se ilumina; se cospes nela, ela se apaga. É tudo feito pela boca.